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Graal

  Hoje eu desci na parada do graal. Não por vontade, mas pela minha falta de capacidade de não permitir a vontade alheia. Eu era aquela pessoa da cadeira do corredor que prende a pessoa da cadeira da janela. A pessoa da cadeira da janela tem a janela, a vista, o controle da cortina, a parede do ônibus para apoiar a cabeça, o espaço entre a cadeira e a parede para enfiar cacarecos, como livros, barras de chocolate, celulares. A pessoa do corredor tem apenas o controle da saída da pessoa da janela que evidentemente é uma privilegiada. Exercitar esse controle é lutar contra a desigualdade social das dinâmicas de força do ônibus. Deixar que a pessoa da janela passe fome, fique apertada para fazer xixi, claustrofóbica é lutar por justiça.  Porém nessa madrugada, quando o ônibus parou e a pessoa da cadeira da janela começou a sutilmente se mexer, eu percebi naqueles gestos que ela não se humilharia para pedir para passar. Ela ficaria lá, me observando dormir e pensando tudo que ela poderia t

Melô da canceriana ou mínima provisória

 Não adianta pensar muito e fazer pouco ou nada.  Essa é a máxima dos meus conflitos burgueses. Burgueses do tipo sempre prestes a não conseguir pagar o aluguel seguinte. Ainda assim profundamente burgueses. E eis a raiz da questão: penso comigo e faço com os outros. Pelos outros. Pra alguém. Por você. Pro espectador. Pra quem lê. Pra quem ouve. Praquele grande amigo. E tudo pro meu maior amor. E mais ainda pela minha filha. Páreo duro com a minha mãe. E tem meu pai. Por ele eu morro. E minha irmã, e meu irmão, e meu vizinho que é pai da amiga da minha filha, casado com a amiga da minha amiga que é madrinha da minha sobrinha que por algum motivo pra mim precisa ser agradada por mim.  Não sou do tipo que defende a fome, votou no Bolsonaro ou que simplesmente não pensa em nada disso. Mas isso é que mínimo. Sou o mínimo. Mínima.

Não fede nem cheira

  O problema das fotos é mais a ausência de cheiro do que de movimento.   Eu até previ um pouco como deveria ser a sua voz. E cheguei próximo. Seus gestos, o jeito como fecha a boca entre uma palavra e outra, a maneira como se senta… nada fora do esperado. Mas você tem um cheiro de quem é excessivamente limpo. Você nunca andou descalço. Tenho certeza disso. E apesar de todo o conhecimento sócio-político ultra coerente, você pede um café gelado e eu sei que de noite seria vinho branco e de manhã cedo suco verde e tudo isso me dá vontade de voltar a fumar dois maços por dia imediatamente. O lugar que marcamos também não ajuda. Não tem cerveja de garrafa. Me rendo a long neck de milhões. Você deve usar aquele aparelho invisível da moda porque não há nenhuma imperfeição dentária aparente, por menor que seja, um espaçamento micro entre o canino e o dente ao lado, qualquer coisa que seja só sua… Nada. Você é uma costura de retalhos de tudo o que é tendência atual. Sou capaz de adivinhar o li

Nada

Convivo com a sensação ininterrupta de estar jogando a vida no lixo.  E não é de hoje. Apenas na infância vivia liberta dessa cobrança de aproveitamento exemplar do tempo. Que desconheço até hoje.  Afinal viver é jogar tempo fora.  É irreversível. Hoje eu fiz um bolo de côco enquanto deveria estar lendo um edital. E brinquei com minha filha enquanto deveria estudar casos clínicos pra revalidação. Assisti meio episódio de série enquanto poderia terminar meu livro. Visitei amigos em redes sociais, essa sim uma forma abominável de desperdício de tempo.  Enquanto escrevo penso que poderia estar fazendo algum curso ou concurso público.  Só de boteco era um mestrado, um doutorado e toda uma carreira estabilizada.  Tempo se tornou dinheiro estruturalmente. E ainda que eu tente me convencer de que nossas experiências são muito mais coletivas do que imaginamos, tenho certeza absoluta de que ninguém gasta tanto tempo com nada quanto eu. Sou especialista em fazer nada. E se não fosse a culpa , po

Minha mãe postou depois que escrevi

 O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. (José Saramago--)

Volta

  Não consigo te escrever. Acho que meu corpo correu tanto que a alma não foi capaz de acompanhar. Ficou pra trás e agora preciso buscá-la antes. Tenho feito o caminho de volta com mais atenção do que tive na vinda. Como pude não reparar em nada? Encontrei dois dedos da mão esquerda, três dentes, uma costela e muito cabelo pelo chão. É inadmissível ter passado batido por tantos olhares e entrelinhas. A volta é sempre mais dolorosa do que a ida, já nos ensinam as viagens na infância. Mas não havia outro modo de me encontrar. Tenho recolhido até pedaços de unhas que dizem mais a meu respeito do que qualquer fotografia. Agora, palavra, não encontrei quase nenhuma… Muitas meias, elásticos de cabelo, tampas de tupperware, algumas mágoas... Uma ciumeira boba, mas abundante, me impressionou. Sonhos altos, que já nem lembrava da existência. Planos de todos os tipos, principalmente de fuga. Rabiscos incompreensíveis, números soltos de telefone, de protocolo, um batalhão de senhas com os tais ca